54 - Campina

 

O medo praticamente gritava em minhas veias. Eu nunca a tinha visto tão livre de sua fachada. E ainda assim ela estava muito mais bonita... menos humana...

Ela me olhava e o perigo em seus olhos foi diminuindo e a antiga tristeza voltou ao seu semblante.

- Não tenha medo. – murmurou ela. – Eu prometo... nunca machucar você.

Eu queria soltar uma piadinha do tipo: você nunca me machucaria, é apenas uma garota. Mas não conseguia, eu estava mudo.

- Não tenha medo. – ela repetiu, enquanto se aproximava com uma lentidão exagerada. Sentou-se sinuosamente, com movimentos deliberadamente lentos, até que nossos rostos estivessem no mesmo nível. – Perdoe-me, por favor. Eu posso me controlar. Você me pegou de guarda baixa. Mas agora estou me comportando melhor.

Ela esperou, mas eu ainda estava congelado.

Meu Deus, reage Eduardo. Reage. Está parecendo uma menininha! Reage, cara!  

Mas eu não conseguia.

- Hoje eu não estou com sede, é sério. – ela piscou.

Com essa eu tive que rir, embora não fosse meu sorriso habitual, era trêmulo, o que me envergonhou.

- Você está bem? – ela pegou minha mão.

Reagindo, como o galanteador que eu era, segurei sua mão com a minha, olhando em seus olhos.

- Eu devia ir embora. – começou ela. – Seria seguro para você. Antes que se envolvesse demais.

- E como você acha que meu ego vai sobreviver se você fizer isso? – brinquei, mas ideia de que ela fosse embora era terrível. – Eu não quero que você vá. – confessei, sentindo-me um idiota.

- Eu sou terrivelmente egoísta. Por isso vou ficar. – ela comentou.

- Fico feliz.

- Não fique! – ela ficou ríspida de repente. – Não é só sua companhia que eu anseio. É seu sangue! Sou mais perigosa para você do que para qualquer outra pessoa.

Dei um sorrisinho, embora ainda tivesse sua ameaça em minha mente.

- Então você anseia minha companhia? – provoquei. Notando o quanto ela estava séria, resolvi fazer outra pergunta. – Não entendi a ultima parte.

Ela olhou para mim, e sorriu, o humor mudando novamente.

- Como posso explicar? – ela fingiu pensar. – Eduardo, seu sangue tem um cheiro muito mais saboroso do que os outros sangues têm para mim. É irresistível. Ou quase. – ela fez uma careta.

- Isso acontece com freqüência?

- Não sei. Na verdade conversei com os meus irmãos. Apenas o Edvandro já passou por isso. Duas vezes.

- E você? – fiquei curioso, até meu sangue era irresistível. Gostoso é outro nível!

- Nunca.

- O que o Edvandro fez? – perguntei, para romper o silencio que ficou.

Era a pergunta errada. Seu rosto escureceu, a mão se fechou em punho na minha. Ela desviou os olhos. Esperei, mas ela não ia responder.

- Acho que sei. – disse por fim, o coração martelando audivelmente.

- Até o mais forte cai do galho.

- Está querendo algum tipo de permissão? – tentei soar corajoso, mas minha voz soou histérica. Droga, Eduardo, se for para morrer morre como um macho e não uma mariquinha! – Quer dizer que não há esperança? – nem sei como consegui manter a calma.

- Não! – ela ficou pesarosa. – Claro que há esperança. Eu não ia... é diferente para nós. – seu rosto ficou torturado. – Juntei todas as minhas forças para não pular naquela sala cheia de crianças e... Quando você passou por mim foi horrível. O seu cheiro era demais para suportar. Quase pus tudo a perder. Se eu não tivesse renegado minha sede por tantos anos, eu não teria sido capaz de me refrear. Mas eu agüentei. E depois, quando tentava reorganizar meu horário para não encontrá-lo, você apareceu com esse seu cheiro inebriante. Só havia mais um humano lá. Um frágil humano. Mas resisti. Não sei como. E fui embora da cidade, longe de você e seu cheiro.

Eu a encarei, surpreso.

- No ar puro das montanhas era difícil acreditar que seu cheiro era tão irresistível. Me convenci que tinha sido fraqueza fugir, e então eu voltei. Voltei para minha família. Tomei precauções, caçando mais que o normal, para não ter riscos. Mas seu cheiro era sempre o melhor, o mais desejado... Depois, com o acidente com a van, eu fiz a tolice de nos expor. Você pensaria que fiz isso para não deixar seu maravilhoso sangue escorrendo no chão e eu não resistisse e nos denunciasse. Imagina a cena de horror? Mas não o salvei por isso, salvei por que era você. Eu te queria vivo. Você nunca contou a ninguém a verdade e eu achei estranho, vindo de você. Mas ainda acho que eu deveria ter me exposto naquele dia com tantas testemunhas a machucá-lo aqui, quando estamos sozinhos.

- Por quê?

- Eduardo, eu não poderia conviver comigo mesmo se o ferisse. Você é a coisa mais importante do meu mundo. A mais importante de toda a minha vida.

Eu congelei, dessa vez chocado. Ela estava se declarando. CLARA ESTAVA SE DECLARANDO. Oh céus, eu ia enfartar. E eu não estava me achando por isso, eu estava feliz, muito feliz. E era só isso que bastava.

- Você sabe como eu me sinto. Eu estou aqui. – comentei.

- E a leoa se apaixona pelo cordeiro.

- Que cordeiro imbecil. – comentei, um sorrisinho em meus lábios.

- Que leoa masoquista e doentia.

Nos olhamos por um tempo, eu queria me aproximar dela novamente. Mas tinha medo de sua reação.

- Por que você fugiu de mim antes?

- Bom, você o modo como você se aproximou sabe. Quando você está muito perto o cheiro é demais. E o cheiro do seu pescoço. Foi só surpresa. Não se preocupe, não vai mais acontecer. – ela sorriu.

- Posso então? – olhei significativamente para ela.

Clara enrijeceu imediatamente, parecendo uma estátua. Eu me aproximei dela, lentamente, olhando em seus olhos, esperando notar quando aquilo fosse demais para ela.

Então, encostei meus lábios delicadamente nos lábios frios e marmóreos dela.

E depois eu perdi o controle, o sangue ferveu sob minha pele, ardendo em meus lábios. Minha respiração assumiu um ofegar louco e meu dedos trançaram em seu cabelo, puxando-a para mim.

Imediatamente senti que ela se transformava numa pedra inanimada sob meus lábios. Suas mãos empurraram meu rosto para trás, delicadamente, mas com uma força irresistível. Abri os olhos e vi a expressão de cautela.

- Epa. –murmurei. – Será que devo? – tentei ir para trás, notando o brilho no olhar dela.

- Não, é tolerável. Espere um momento por favor. – a voz era educada e controlada.

Mantive os olhos nela, assistindo a excitação diminuindo e suavizando.

Depois ela deu um sorriso surpreendentemente travesso e diabólico.

- Pronto. – disse, obviamente satisfeita consigo mesma.

- Tolerável? – perguntei.

Ela riu alto.

- Sou mais forte do que pensava.

- Queria poder dizer o mesmo. Desculpe. – pedi, nem um pingo arrependido.

- Você não consegue resistir ao seu beijo de galã? – ela provocou.

Eu abri um sorriso, as coisas estavam bem.

- Posso lhe mostrar uma coisa? – perguntou.

- O que?

- Como eu viajo na floresta. – ela viu minha expressão. – Não se preocupe, é seguro e chegaremos ao carro mais rápido.

- Vai se transformar num morcego? – provoquei.

- Engraçadinho. – ela riu. – Venha, suba nas minhas costas.

- O que? – fiquei chocado.

- Vamos Eduardo. – ela levantou e veio me ajudar a levantar. – Eu sou mais forte que você, admita.

Grunhi, zangado, mas sabia que era verdade.

- Subir nas suas costas é demais. – murmurei, uma carranca em meu rosto.

- Rá. – ela resmungou, sorridente. Nunca a vi com tão bom humor. – Sobe logo ou vou carregá-lo como um bebê. – ela ameaçou.

- Isso é injusto! – resmunguei, parando nas costas dela.

Ela era tão baixinha perto de mim. Como ela iria conseguir me carregar?

- Segure meu pescoço Eduardo, e passe as pernas na minha cintura.

Fiz o que ela pediu, nem um pouco animado. Era como montar numa pedra, mas eu gostei de estar tão pertinho dela.

E então estávamos voando pela floresta. Os pés dela mal pareciam tocar o solo e as árvores pareciam borrões passando ao nosso lado. O vento era super forte, como meter a cabeça para fora de um avião em voo. Percebi por que ela gostava tanto daquilo. Eu estava sorrindo com a sensação  e a adrenalina correndo em minhas veias.

Esqueci-me que estava sendo carregado por uma garota, feliz com a maravilhosa sensação.