71 - Telefonema

 

Quando acordei, percebi que era cedo demais – de novo. Eu estava começando a inverter meus horários. Não que eu me incomodasse com isso. Só pensava quanto tempo essa confusão levaria para ser resolvida. E quando eu finalmente poderia ver Clara, abraçar ela, beijar seus lábios frios.
Percebi então a voz de Joaquim e Elidia no outro aposento. O fato deles falarem alto a ponto de eu poder ouvir me intrigou. Levantei da cama e segui até a outra sala.
Elidia estava curvada numa folha, fazendo outro desenho. Joaquim estava atrás dela, vendo seu trabalho. Me aproximei, tentando ser silencioso – sem saber se meu esforço era realmente útil. Parei ao lado de Joaquim e sussurrei.
- Ela teve outra visão?
- Sim.
Observei também o desenho que Elidia fazia. Era uma sala grande, o sofá, havia uma estante onde a tevê e o vídeo estavam. O chão parecia de madeira, um assoalho, e havia alguns brinquedos pelo chão.
- Aqui fica o telefone. – apontei para o lado da tevê.
Dois pares de olhos eternos pousaram em mim.
- É a casa do meu pai.
Elidia se ergueu num átimo e estava com o celular no ouvido. Falou tão rápido que apenas seus lábios se moviam, num jato. Não consegui entender, nem ao menos tentei acompanhar. Joaquim fez algo incomum para ele, se aproximou de mim e tocou meu ombro. O contato parecia aumentar ainda mais sua influencia tranquilizadora.
- Eduardo. – disse Elidia.
Olhei para ela.
- Eduardo, Clara vem buscar você. Ela, Carlos e Edvandro vão levá-lo para outro lugar. Algum mais seguro. Vão te proteger.
Ainda assim, algo gritava dentro de mim.
- Não. Não. Meu pai. Meu pai, Elidia. Se ela pegar meu pai? E Solange? E as crianças? Eu não posso sair daqui como um covarde, me escondendo. Não posso permitir que ela machuque alguém que eu conheço.
Ela me olhou, pacifica.
- Não se preocupe, vamos ficar aqui e cuidar do seu pai.
- Acham que podem proteger todo mundo? Acham que é só com minha família humana que me preocupo? Me preocupo com vocês também. Com o que pode acontecer com vocês. EU não sou de fugir da luta, ok? Como uma menininha medrosa. Não podem me esconder para sempre! – o desespero já se apossava de mim.
Elidia olhou para Joaquim e então eu me senti letárgico, uma nuvem veio sobre mim e tudo começou a escurecer. Percebendo o que estava acontecendo eu me afastei dele.
- Eu não quero dormir! – gritei e fui para o quarto, batendo a porta.
Andei de um lado para o outro, furioso. Eu sabia que tinha que fazer alguma coisa – mas não era tolo o suficiente para ir ao encontro da vampira letal que queria me ter como lanchinho.
O único consolo era que em breve eu veria Clara, poderia abraçá-la, beijá-la. Depois que eu a encontrasse, provavelmente não haveria mais nenhum problema. Nada que me incomodasse, desde que eu estivesse com ela.
Mais tarde, quando o telefone tocou, voltei para a sala, desejando que os dois não estivessem chateados comigo. Estava grato – e farto – por ser protegido por eles.
Elidia falava num jato no celular, quando desligou, ela olhou para mim. Joaquim não estava na sala – o que eu achei estranho.
- Eles pegaram o avião. Devem chegar aqui às nove e quarenta e cinco.
Então faltava pouco.
- Onde está Joaquim?
- Foi pagar a conta.
- Não vão ficar aqui?
- Não. Vamos ficar mais perto da casa de seu pai.
Fiquei aliviado que pelo menos eles fosse fazer algo por meu pai. Não queria ter a morte dele em meus ombros.
O celular tocou novamente. Fui em direção para atender. Elidia parecia surpresa e atendeu.
- Não. Ele está bem aqui. – e me passou o celular. – seu pai. – murmurou.
- Pai? – atendi, ansioso.
- Eduardo? – sua voz era calma, tranquila, mas preocupada. Eu reconhecia aquela voz. Fiquei aliviado por ser tão familiar. Eu senti muita falta dele naquele momento, sabia que tinha que me explicar.
Fui me afastando de Elidia. Não queria muito falar com meu pai com seus olhos colados em mim.
- Pai. Está tudo bem viu. Só me dê um minuto e eu vou explicar tudo. – me apressei em dizer. Eu sabia que mesmo aparentando calma ele ficava muito preocupado.
Eu parei, esperando que ele me respondesse.
- Pai?
- Não diga nada até que eu autorize.
A vos feminina era perfeita. E ela falava rápido demais. Ainda assim eu podia acompanhar. Fiquei congelado de terror no meio do passo.
- Agora, eu não preciso machucar ninguém da sua família. Muito menos seu pai. Mas você tem que se comportar. – ela parecia se divertir. Eu estava num terror mudo. – Muito bom, agora diga: “não pai, está tudo bem. Fique onde está”.
- Não pai, está tudo bem. Fique ai onde está. – repeti, minha voz mortificada, aterrorizada.
- Ai ai, parece que vai ser difícil. – havia diversão em sua voz. – Agora saia do cômodo, para que sua cara não estrague tudo e diga “pai, me ouça”.
- Pai, me ouça. – tentei parecer mais eu. Enquanto seguia até o quarto. O olhar de Elidia em mim. Fechei a porta em seguida.
- E agora está sozinho? Responda apenas sim ou não.
- Sim.
- Mas eles ainda podem ouvi-lo, tenho certeza.
- Sim.
- Muito bem, agora diga “pai, confie em mim”.
- Pai, confie em mim! – minha voz saiu mais energética, mais convincente.
Ela riu.
- Muito bem. Agora ouça com muito cuidado. Preciso que se afaste do seus amigos. Acha que pode fazer isso? Sim ou não?
- Não.
- Que decepção. Achei que fosse um pouco mais criativo. Acha que pode fazer isso se depender da vida de seu pai? Sim ou não?
Pensei em algo que pudesse me salvar. Com uma vidente? Como eu poderia fazer isso? Foi então que me ocorreu... o aeroporto.
- Sim.
- Que bom assim. Espero que não arme nenhuma armadilha, ou traga alguém junto. Eu saberei. E sabe que eu posso perceber isso com muita rapidez, e posso tirar a vida de seu pai com a mesma rapidez. Sabe? Sim ou não?
- Sim. – senti medo.
- Tudo bem Eduardo. Preciso que você vá a casa de seu pai. E ligue para o número que está ao lado do telefone e eu darei as próximas instruções. Pode fazer isso? Sim ou não?
Eu sabia onde tudo iria parar, mas iria seguir o jogo dele.
- Sim.
- Muito bem. Antes do meio-dia por favor, não tenho o dia todo. – pelo tom dela parecia um encontro amigável.
- Onde está Solange? – perguntei, tenso. Pensando no terror que ela deveria estar sentindo.
- Ah cuidado. Espere que eu lhe peça para falar.
Eu esperei.
- É importante que você não deixe seus amigos desconfiados. Precisa ser convincente entendeu? Agora repita: “obrigado pai”.
- Obrigado, pai.
- Diga “até logo pai”.
- Até logo pai. – minha voz tremeu.
- Adeus. Estou ansiosa para vê-lo novamente. – ela se despediu, simpática. E desligou.
Segurei o celular na minha orelha, sem conseguir me mover. Eu estava congelado de pavor. E ainda tinha que pensar, planejar como fazer aquela fuga. Não podia permitir que meu pai fosse ferido.
Mas o que eu podia fazer? Ir ao estádio e apenas morrer. Não havia alternativa. Não tinha como eu vencer. E se isso não bastasse? E se ela ferisse meu pai? Ou ainda quisesse ir atrás de Clara?
Não havia garantias. Eu tinha que fazer isso. Era a única alternativa.
Voltei para a sala com um rosto indiferente, morto.
- Falei com meu pai. Ele disse que está fora e não vai voltar.
- Vai ficar tudo bem. – ela tentou ser solidaria.
Eu virei meu rosto e este pousou numa folha.
- Elidia, se eu escrever uma carta para meu pai você entregaria para ele. Quero dizer, deixaria na casa?
- Claro. – ela concordou. Um pouco preocupada. Eu tinha que ser mais convincente.
- Obrigado. – peguei a folha e voltei para o quarto.
“Clara”, escrevi, e minhas mãos tremiam. Minha letra estava mais garranchosa que nunca. Pensei que não a veria nunca mais e, vergonhosamente, um lágrima rolou pelo meu rosto. A enxuguei apressadamente e continuei a escrever.

Eu te amo e lamento muito. Ela pegou meu pai e eu preciso tentar salvá-lo. Sei que pode não dar certo. Eu sinto muito, muito mesmo.
Não fique com raiva da Elidia e do Joaquim, se eu conseguir escapar deles será um milagre. Agradeça a eles.
E por favor, não vá atrás dela. Não quero que você se machuque. Por favor. Te amo. Perdoe-me.
Eduardo.


Dobrei a carta, preocupado com Clara. Com tudo. Esperava que ela me ouvisse. Era para proteger ela também. A todos que, hm, amo.
Bom, é isso. Agora era esperar para morrer.