69 - Mudança dos Planos

 

 

Quando acordei me senti desnorteado. Foi difícil reconhecer o local que estava, o que realmente tinha acontecido. Como eu tinha parado naquele quarto de... hotel?
Sentei na cama olhando ao redor, até que a lembrança esmagadora caiu sobre mim. Lembrei do rastreador me olhando vorazmente, de Clara rugindo protetora, do desprezo de Etelvina, do trajeto no carro com vidros tão pretos. Joaquim dirigindo, Elidia ao seu lado – como deveria ser.
Ele não tinha que fugir e ser escondido pela família dela para que continuasse vivo. Eles podiam ficar juntos. Ele nunca passaria por esse problema com um rastreador.
Soquei o travesseiro, impaciente... raivoso...
Lembrei-me de toda a viagem silenciosa. De como cheguei aqui mal me mantendo com os olhos abertos. Olhei para o relógio, três horas, mas não sabia se da manhã ou da tarde.
Cambaleei até a janela, desnorteado.
Abri a cortina e vi que estava escuro. Três da manhã então. Eu podia distinguir o aeroporto Santos Dumont na minha amada cidade. Eu me senti bem por estar num local que eu conheço. Mas eu não queria estar ali – eu queria estar em Joinville, com Clara e toda aquela chuva.
Pulei com a batidinha na porta – agradecido que ninguém pode ver esse momento de fraqueza.
- Posso entrar. – pediu Elidia.
- Claro. – minha voz saiu rouca e fraca.
Dei um pigarro enquanto ela entrava como uma bailarina. Elidia foi até a janela e fechou a cortina.
- Você não pode sair daqui.
- Tudo bem. – dei de ombros, embora estar ali e não sair para ver novamente o sol parecesse um crime.
- Parece que dormiu demais. – observou.
- Acho que sim.
- Eu pedi comida para você. Clara me lembrou que come com mais frequência do que nós.
- Ela...
- Não. Ela me disse isso antes de partirmos. Não se preocupe. Quando puder ela liga. Venha comer. – convidou.
Segui ela até a sala, Joaquim estava sentado no sofá, seu rosto colado na televisão, o som tão baixo que eu não conseguia ouvir. Sentei numa poltrona, sozinho, e olhei para a comida. Faminto como estava comecei a comer imediatamente.
Depois que estava quase satisfeito, observei Joaquim e Elidia – ela agora havia se sentado ao lado dele – os dois olhavam para a TV com olhos inexpressivos, e estavam imóveis demais.
Afastei a bandeja. Elidia olhou para mim.
- Qual é o problema? – olhei para ela, um pouco arrogante.
- Nenhum. – seus olhos eram sinceros demais, não acreditei.
- O que vamos fazer agora? – insisti.
- Esperar que Carlos ligue. – seus olhos dispararam para o celular na mesa de centro.
- Ele já devia ter ligado? – perguntei, minha voz delatando meu medo. Ainda assim fiquei encarando ela, apavorado.
- Se ele não ligou é por que ainda não tem nada para contar. – ela deu de ombros, suave demais para que eu acreditasse.
Joaquim se curvou para ela, se aproximando de mim. Olhando em meus olhos.
- Eduardo – sua voz era tranquilizadora demais. – Você está seguro aqui. Não tem com o que se preocupar.
- Eu sei. – concedi, de mau grado. Eu não queria confessar o que realmente me preocupava.
- Então por que está assim? Assustado? – ele tinha que falar a palavra? Droga, ele sabe o que sinto mas não entende o que tem por trás do sentimento?
- Não é por mim. – dessa vez eu olhei para outro lado. A voz num sussurro. – É por Carlos, Edvandro... pela Clara. E a Esther. Por eles que estão lá, correndo perigo por mim.
- Eduardo, você está preocupado com o lado errado. Nossa família é forte, eles vão sair bem dessa. Não se preocupe. A única preocupação é você. O único medo é perder você...
- Por que...
Elidia interrompeu.
- Eduardo, Clara levou cem anos para encontrar você. Nós vivemos com ela esse tempo, vimos a mudança que você fez na vida dela. Como você acha que vamos olhar para ela nos próximos cem anos se ela te perder?
Meu pavor se abrandou enquanto olhava para seus olhos escuros. Mas eu não era tolo para confiar em meus sentimentos com Joaquim presente.
Foi um dia muito longo.
Fiquei andando de um lado para o outro, enquanto Joaquim e Elidia – só a imortalidade pode dar tamanha paciência – mantinham-se sentados, olhando para a tevê. Seus olhos me seguindo imperceptivelmente.
Eu estava mais impaciente do que nunca. Às vezes sentia um verdadeiro pavor pela caçada que acontecia, por minha mãe, por Clara... Tentava disfarçar antes que eles notassem, mas Joaquim sempre me olhava nesses momentos.
A comida vinha regularmente para mim. Eu comia, esfomeado. Mas sabia que iria ficar barrigudo se continuasse mais alguns dias ali naquela inércia. Quando caiu a noite decidi ir para o quarto. Elidia se levantou e me seguiu, como se naquele exato momento tivesse enjoado da sala.
Sem lhe dar nada além de um olhar zangada, me joguei na cama, planejando dormir. Mas assim que o efeito tranqüilizante de Joaquim passou, me sentei na cama e encarei Elidia – sentada com as pernas dobradas na ponta da cama.
- Acha que tem algum problema? – perguntei.
- Não. Claro que não. Eles apenas não vão querer ligar se tiver a possibilidade dela ouvir. Esther já deve estar em Joinville, protegendo sua mãe.
Olhei para ela com atenção.
- Não está falando isso para não me preocupar não é? Acha que eles estão mesmo seguros.
- Com certeza.
- Está falando a verdade mesmo?
- Sim.
Observei seus olhos. Pareciam muito sinceros – dessa vez eu acreditei.
- Então me diga uma coisa. Como se tornou vampira?
Ela ficou pensativa, o olhar vago.
- Clara não quer que você saiba isso.
- Você não concorda? – percebi, com uma risadinha. – Conte-me, Clara não tem nada a ver com isso. Você é minha amiga não é?
Pelo seu sorriso, percebi que ela já sabia disso, provavelmente antes de me conhecer.
- Tudo bem, vou lhe contar a mecânica disso. Já que eu não tenho lembrança da minha transformação. Nós como predadores, temos muitas armas, mais do que precisamos realmente, a aparência, o cheiro, a velocidade, a força. Alguns com talentos sobrenaturais como eu, Clara e Joaquim. Então também temos o veneno, ele imobiliza nossa presa pela dor que causa, assim ela não escapa. Não que isso seja necessário. Quando estamos por perto eles não conseguem fugir. Claro que existem exceções, como Carlos.
Lembrei-me de Clara falando sobre isso na clareira.
- E se o veneno se espalha?
- Leva alguns dias para acontecer. Dependendo do tanto de veneno e da proximidade com o coração. É difícil de se ver e pior ainda de se sentir. Durante todo o momento a vitima desejaria estar morta.
Tentei manter meu rosto calmamente composto com isso.
- Clara me disse que é difícil fazer isso. Não entendi. Não é apenas morder?
- Não. Exige um controle para o vampiro que faz isso. Quando se sente o gosto do sangue. É difícil parar. Acontece um frenesi. A pessoa pode matar a vitima ao invés de transformá-la. Não é fácil. Pra nenhum dos dois. Por um lado o desejo do sangue, por outro a dor medonha...
- Por que você acha que não se lembra?
- Eu não sei. Para todos a lembrança humana mais forte é a dor da transformação. Mas eu não lembro de nada, nem dela nem da minha vida humana. Não sei.
Ficamos em silencio por muito tempo.
Até que Elidia pulou da cama num salto, me assustando.
- Alguma coisa mudou. – a voz era urgente e ela não falava comigo.
Ela chegou a porta no mesmo instante que Joaquim. Ele a segurou e a trouxe para a ponta da cama onde a sentou.
- O que você vê? – perguntou intensamente, fitando os olhos dela.
- Vejo um quarto. É comprido, há piso por todo o lado, piso branco. O chão também é de piso. Ela está na sala e espera. Há um brilho prateado.
- Onde fica a sala.
- Não sei. Falta alguma coisa. Alguma decisão.
- Quanto tempo?
- Logo. Ela ficará na sala hoje, talvez até amanhã. Depende. Espera alguma coisa. E agora está no escuro.
A voz de Joaquim era metódica. Direta.
- O que ele está fazendo?
- Está em outra sala. Assistindo algo. Um vídeo eu acho.
- Pode ver onde ele está?
- Não. Está escuro demais.
- Fale mais sobre a sala?
- Só tem piso. Aquele brilho prateado. O resto está oculto. Ela está na sala. É lá que ela espera. – Elidia então se focalizou. Encarando Joaquim.
- Não há mais nada?
Ela negou.
- O que significa isso? – perguntei.
Por um momento nenhum dos dois respondeu. Até que Joaquim olhou para mim.
- O rastreador mudou de planos que vai levá-lo para essa sala de piso.
Pensei um pouco.
- Não sabemos onde fica essa sala?
- Não.
- Mas sabemos que ela não está mais sendo seguida pelos outros. Ela os enganou. – falou Elidia, inexpressiva.
- Devemos telefonar? – sugeri.
Nesse momento o celular tocou. Elidia estava na outra sala antes mesmo que eu levantasse a cabeça. Fui até lá.