60 - Carlos Buzzi

 

 

- Eduardo, você não é normal! – ela me afastou após alguns segundos.

- Olha quem fala! – resmunguei.

- O que achou da casa? – ela mudou de assunto. – Não era nado do que você esperava, não é?

- Nem um pouco. Esperei um castelo medieval, cheio de teias de aranha, caixões, calabouços, escuridão total, esqueletos espalhados... Talvez o Drácula tomando um chá de sangue na sala em uma visitinha social. – deu uma risadinha.

- Fico feliz em decepcioná-lo. – ela deu uma risadinha também.  – Quer ver o resto da casa?

- Nada de caixões? – provoquei.

- Decepção de novo. – ela riu. – Vamos.

Subimos a escada, parando diante de um longo corredor de madeira cor de mel.

- O quarto de Etelvina e Edvandro... O gabinete de Carlos... O quarto de Elidia... – ela apontava enquanto passávamos pelas portas.

Até que eu parei, olhando incrédulo para o ornamento pendurado na parede. Clara riu de minha expressão.

- Ria. É mesmo irônico.

Eu não ri. Aquilo era sinistro demais. Numa casa de vampiros encontrar uma cruz de madeira na parede não estaria nem em meus melhores sonhos. Encarei o objeto com obstinação.

- Deve ser antiga. – conjecturei.

Ela deu de ombros.

- 1630, mais ou menos.

Desviei os olhos para encará-la.

- Por que vocês têm isso?

- Nostalgia. Pertenceu ao pai do Carlos.

Eu, muito idiota soltei:

- Ele colecionava coisas antigas?

- Não. Ele mesmo fez. Estava pendurada na paróquia onde ele pregava.

Eu tentei fazer as contas mentalmente, mas era péssimo em matemática. Fui obrigado a perguntar.

- Quantos anos tem Carlos?

- 362 aninhos. – ela ironizou.

Tentei manter meu rosto tranquilo, para que não a desse razão em me achar um medroso.

- Era filho de um pastor. A mão morreu dando a luz. Seu pai era um homem intolerante. Ficou fanático por perseguir o mal. Liderou a perseguição de bruxas, de lobisomens... e vampiros.

Fiquei congelado. Aquilo não era o que eu esperava. Clara prosseguiu.

- Eles matavam muitos inocentes. Não era fácil encontrar as criaturas que eles perseguiam. Quando o pai dele envelheceu, entregou ao filho esse papel. Carlos foi uma decepção, ele não era de entregar inocentes. Era mais observador e esperto. Encontrou vampiros de verdade, vivendo em buracos. Alguns saiam a noite para caçar. Naquela época quando todos sabiam da verdade sobre os monstros, era assim que eles viviam.

Continuou:

- Eles se reuniram, prontos para queimá-los. E esperaram onde Carlos os viu saindo. Por fim um deles apareceu. Ele era velho e estava fraco pela sede. Poderia ter fugido, mas não fugiu. Foi direto para Carlos e o mordeu. Matou outros. Deixou Carlos ferido na rua.

Ela parou. Pude sentir que estava editando.

- Carlos sabia o que aconteceria. Ele seria queimado, por que estava contaminado. Por sobrevivência se arrastou na rua e se escondeu num porão cheio de batatas podres. Foi um milagre que conseguisse manter silencio. Depois de três dias ele despertou, havia terminado e ele notou no que havia se transformado.

Ela me observou. Eu mesmo sentia a curiosidade me queimando.

- Imagino que tenha algumas perguntas.

Confirmei.

Seu sorriso se alargou. Ela começou a voltar pelo corredor, me puxando pela mão.

- Então venha. Eu vou lhe mostrar.

 

Ela me levou ao gabinete de Carlos. Parou do lado de fora por um instante.

- Entre. – Carlos convidou.

Clara abriu a porta e me puxou para o gabinete de seu pai. Aquele era o tipo de lugar que eu nunca iria querer entrar – prateleiras abarrotadas de livros, um mesa à nossa frente...

Um lugar bem para pessoas estudiosas e ávidos leitores. Duas características ausentes em mim.

Completamente.

- Carlos, vim contar ao Eduardo um pouco da nossa história. Bom, da sua história na verdade.

Carlos acenou.

- Quer contar? – Clara ofereceu.

- Não. Na verdade eu já tenho que ir ao hospital. O doutor Ricardo ficou doente e eles precisam de alguém. Você pode contar. Conhece a história tão bem quanto eu. – ele sorriu para mim. E caminhou para a porta, saindo sem fazer barulho.

Clara me virou para a parede atrás de nós. Vários quadros preenchiam aquele lado. Alguns eram coloridos, monocromáticos, sépia. Tentei imaginar por que alguém queria quadros em casa.

- Como eu lhe disse, depois que foi atacado e descobriu no que se tornou, Carlos tentou se matar. Tinha ódio de si mesmo pelo monstro que ele era. Mas ele era novo e muito forte. E não é nada fácil para nós nos matar.

Curioso abri a boca para perguntar. Ela continuou.

- Ele tentou se matar por inanição, já que nada surtia efeito. Mas ai percebeu que com a sede ficava mais difícil resistir perto dos humanos. Então ele se afastou, foi para uma floresta. Um dia, cego pela sede, passou uma orda de veados por ele. Alucinado como estava ele os atacou e se alimentou. Foi então que Carlos percebeu que podia viver sem ser um monstro. Com essa descoberta ele voltou a se aproximar das pessoas, mas a época era ainda perigosa, ainda acreditavam em vampiros. Ele partiu de Londres, seguindo pela Europa, a nado.

- Espera! Você disse a nado? – fiquei espantado.

Ela hesitou.

- É fácil para nós... nadar. Não... precisamos respirar.

- O que? – fiquei surpreendido.

- Bom, é só costume entende. E é meio estranho ficar sem o olfato. Mas não é algo necessário. – ela deu de ombros, observando minha reação.

- Quanto tempo? Sem respirar, quero dizer.

- Indeterminado. Imagino. – ela deu de ombros, me observando. Seu olhar ficou duro. – Às vezes eu acho que algo em mim vai te assustar.

- Você sempre acha que vai me assustar. – revirei os olhos. – Então ele nadou... – incentivei.

Ela pensou um pouco e continuou.

- Como tinha mais tempo começou a estudar muito. Ele sempre gostou de estudar. Mas só podia fazê-lo à noite.

Ela me apontou um quadro. Era enorme, maior que a porta, quatro figuras estavam numa sacada, observando o movimento abaixo. Reconheci o louro do canto. Carlos.

- Enquanto seguia, Carlos encontrou na Itália outros como ele. Muito mais civilizados do que os vampiros de buraco que o transformaram. Eles vivem muito bem. Só que não abandonam o estilo natural de alimentação. Carlos tentou coagi-los, eles também, e não houve nenhuma mudança. Amos, Ciro e Malco, foram os primeiros a colocarem e ideia de uma vida civilizada em Carlos. Depois que os deixou, Carlos veio tentar a vida no Novo Mundo. Foi então que me encontrou, morrendo. Ele queria ter alguém tanto quanto temia acabar com a vida de alguém, dar esse mesmo destino. Como minha família já tinha morrido, eu estava só e pronto para acompanhá-los. – Clara ficou um pouco mais melancólica nesse momento, talvez com suas próprias lembranças da época. – Depois viemos para a América do Sul e ele encontrou Esther. E assim você já sabe o resto.

Ela me olhou, com um sorriso em seu belo rosto.

- E agora que conhecer meu quarto?

Oh, seu eu não queria...